segunda-feira, 25 de junho de 2012

Festa de aniversário


O sol estava nascendo, as gotas da chuva noturna ainda pingavam no parapeito da janela, quando Edite levantou. Foi maravilhosa a forma como ergueu os braços para espreguiçar-se. Sentia uma alegria diferente, a manhã estava especialmente agradável, aquele prometia ser um dia esplêndido. Vestia um pijama de algodão todo bordado de pequenas margaridas, o cabelo preso à altura da nuca, o olho um pouco remelado. Na cama, deitado preguiçosamente, estava Thor, o gato de estimação. O bichano dormia, a respiração tranquila fazia com que a gorducha barriga subisse e descesse lentamente. Edite fez-lhe um carinho de leve e foi até o banheiro lavar-se. Ao olhar no espelho, não conteve o riso: era um dia especial. 7 de abril. Trinta anos. Ou seriam trinta e um? Não importava. Abriu o armário e retirou um vestido colorido, passou a escova no cabelo e sentou-se na cama. Tranquilamente fechou os olhos e pode ouvir sons quase imperceptíveis ao seu redor: a respiração vagarosa de Thor, as gotas batendo no parapeito da janela, o vento que entrava suave, fazendo as cortinas esvoaçarem como folhas. Respirou fundo, estava indecisa. Não sabia se descia logo ou esperava mais um pouco. Será que deveria dar mais um tempo arrumando-se? Movia os pés, tremia as pernas, impaciente. Ah! como era um dia especial. Desceu lentamente as escadas, não queria fazer barulho. Na sala, balões coloridos amarrados com barbante aos móveis, flores, almofadas novas. Edite andou até uma poltrona coberta por uma manta vermelha, sua cor favorita. Uma homenagem magnífica, pensou, sentando-se na poltrona e pondo o rosto sobre a manta que era macia como um colo de mãe. Viu as janelas abertas, uma luz alaranjada invadia a casa, os primeiros raios de sol. Edite não resistiu e levantou-se, debruçou-se sobre uma das janelas e admirou por um instante a rua ainda vazia. Foi então até a cozinha. A mesa estava linda como nunca: pão, queijos, suco e um bolo coberto com glacê amarelo, tudo como ela gostava. Pos o dedo na borda do bolo e lambeu, num gesto que a fez lembrar-se da infância, de quando a mãe fazia-lhe banquetes de aniversário. Sem que tivesse tempo de perceber, o olho encheu d’água, o coração deu aquele arrepio. Andou pela cozinha dando passos leves, não queria estragar a surpresa. Assustou-se ao ver Thor entrar: “Xiiiii”, fez um gesto pedindo silêncio ao gato, que deitou-se ao pé da mesa. Edite sentia-se contente, estava verdadeiramente alegre. Puxou uma cadeira e sentou-se. Pegou então uma vela branca e pos no centro do bolo. Riscou o fósforo. Com delicadeza colocou um guardanapo no colo. Mirou a chama da vela e soprou-a. “Parabéns pra mim”, ela disse, acariciando com o pé o gato que ressonava ao pé da mesa. E tomou café da manhã sozinha.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Encontro


Encontrou-a num banquinho de praça, sentada com as mãos sobre os joelhos. Ela vestia uma saia vermelha e uma blusa cor de laranja que apertava-lhe o abdômen, estufando-lhe os seios naturalmente volumosos. Às vezes ela fazia um movimento com a cabeça como se ressonasse, os olhos apertados, parecia cansada. Ele foi-se aproximando aos poucos, chutando pedrinhas no chão e fingindo olhar os carros que passavam na rua. Percebendo que o estranho a cercava, ela acuou-se, encolheu as pernas, apertou contra o peito a bolsa que carregava e disfarçou. Ele sibilou, vagueou o olhar, as mãos tremiam um pouco, não queria assustá-la. Há tanto tempo fazia aquilo, mas sempre era como a primeira vez. Ela, que acabara de chegar à cidade, estava desconfiada, tudo era muito novo, os ares daquele lugar eram muito diferentes, as pessoas muito estranhas e de costumes estranhos também. Estava sentada num banco de praça e tudo que fazia era descansar enquanto tomava consciência da mudança, da nova vida que estava por vir. Então aparece aquele homem que ela não sabia quem era e por que estava tão perto. Tão perto que ela podia sentir sua respiração, o som de seu sapato pisando o chão. Ele começava a demonstrar sinais de nervosismo, o rosto rijo, tentava sorrir, queria olhá-la, olhá-la bem nos olhos, de que cor seriam? Não podia perguntar, seria muito invasivo. Ela estava já quase zonza, a cabeça roc, roc, roc, não parava de se perguntar por que ela, por que naquele banquinho de praça. Fora exatamente como sempre imaginara em seus sonhos de menina: uma árvore verdosa, com folhas exuberantes, uma sombra, um banquinho, crianças ao redor, pedrinhas, ela ali tão feminina e usando batom cor de sangue. Começava a achar a situação aceitável – e repetiu para si mesma, em pensamento “Aceitável”. Sim, seria mesmo aceitável que, ao chegar à nova cidade, encontrasse um sujeito inspirador como aquele e que, juntos, descobrissem as coisas próprias do amor. E tomou um susto ao pensar na palavra amor e em como aquele pensamento mexeu com ela. Num gesto impulsivo, cruzou as pernas lentamente, pos uma mecha de cabelo atrás da orelha e olhou para o chão. Deixou cair a bolsa e, com o coração cheio de esperança, olhou para o lado. Ele então ajoelhou-se, pegou a bolsa e entregou-a com delicadeza. Enquanto ele erguia-se, os rostos foram na mesma direção, encontrando-se. Ela então percebeu que ele era ligeiramente estrábico, mas que havia em seu olhar algo de verdadeiramente desconcertante. Notou que, embora imberbe, havia uma penugem clara em seu queixo. Notou também que seus lábios eram irresistivelmente corados e que tinha uma cicatriz no supercílio esquerdo. Achou que ele tinha um rosto sereno e imaginou como deveria ser mansa a sua voz. Bastou tantas percepções para que ela aceitasse: estava amando, casaria com aquele homem. Ele então pegou a bolsa que ela havia deixado cair, gesto que ela retribuiu com um sorriso afável e, sem querer, deixou escapar o nome: “Rosabela”, disse, inclinando o corpo. O homem, de pé, fez um gracejo, pegou-lhe uma das mãos e, beijando-a levemente, apresentou-se: “Manoel”. Ela não pode deixar de rir. Estava embebida de uma esperançazinha boba, até havia esquecido que acabara de chegar. Sentia-se enraizada àquele lugar, queria ficar, sair, dançar, casar, ter filhos, amar junto àquele homem. Achou-o bonito, atraente. Quis dizer algumas palavras, mas era muito tímida então esperou que ele levasse a conversa. Uns instantes se passaram e ele, antes respirando fundo, disse: “Algodão-doce pra adoçar a vida?”. Ela não entendeu. Desconcertada, sorriu, afinal era o que sabia fazer em momentos de estranheza. O homem repetiu, desta vez, apresentando a ela um algodão-doce azul, depois outro rosa, e um terceiro amarelo: “Algodão doce para adoçar a vida da senhorita”. Levou alguns segundos para que ela compreendesse. Ficou um momento estática, o coração em batidas interrompidas. Com um risinho sem graça, respondeu que não, não queria algodão-doce. O homem entristeceu e ela saiu andando, solitária como sempre fora, chutando pedrinhas no chão.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

O atirador de facas

As arquibancadas estavam lotadas. Louise mal podia acreditar: pela primeira vez estava, enfim, num circo, num circo de verdade, daqueles que ela via na televisão, com palhaços, mulher-barbada e malabaristas aloprados. Tudo era encantador. A lona imensa sob sua cabeça era como um céu colorido, as lampadazinhas multicolores como um arco-íris, e o cheirinho da pipoca quentinha invadia-lhe as narinas, despertando-lhe um desejo visceral de mastigar. Comia o docinho comprado pela tia Anita, mulher pequena, cabelos curtos e de coração mole quando o assunto era a sobrinha. As duas estavam sentadas na segunda fila, ao lado de dois meninos gêmeos e um senhor gorducho. Louise era a mais entusiasmada. A toda hora, sem conseguir controlar a emoção, perguntava à tia por isto, ou por aquilo:

― E a mulher barbada, tia?

― Calma, calma. Mais um pouco e ela deve entrar.

Bastou a tia Anita responder-lhe esta apressada pergunta e logo a mulher barbada entrou. Era uma mulher corpulenta, pernas enormes e uma barba marrom gigantesca. Desfilava pelo picadeiro fazendo gestos com as mãos, soltando sorrisos e divertindo a plateia. Louise aplaudia com fervor: “Bravo, bravo!”. Tia Anita se enternecia, os olhos embaçavam só de ver a alegria da sobrinha. Quando a mulher barbada deixou o picadeiro, Louise, que estava de pé, as pernas tremendo de ansiedade pela próxima atração, mais uma vez interrogou a tia:

― E os elefantes? Não tem elefante?

― Não, mas tem o atirador de facas.

― Atirador de facas? Perguntou Louise com uma expressão de espanto, deixando cair o doce que segurava.

― Sim, sim. Um homem que atira facas numa moça sem acertá-la.

Louise pareceu não acreditar. Sentou-se como que abalada.

― Mas como pode isso, tia?

― Podendo ué. É tudo técnica. Ele atira as facas, mas não acerta a moça.

― E se acertar?

― Não acerta, sorriu a tia, é tudo uma questão de técnica.

Enquanto Louise se surpreendia com as palavras da tia, o locutor anunciava a próxima atração que era, justamente, o atirador de facas. Louise tomou um susto ao ouvir e logo fitou o picadeiro com atenção, estava em êxtase, quando viu entrar um homem de roupa preta, segurando pela mão uma jovem mulher que vestia um macacão dourado. Tambores ruflavam, a plateia em silêncio segurando a respiração. O homem então amarrou a jovem numa roda, girou-a e afastou-se, começando a atirar as facas, uma a uma: “Zap”, foi a primeira, que reluziu numa velocidade impressionante diante dos olhos de Louise. “Zap”, foi a segunda. O homem tinha o olhar compenetrado, as mãos firmes. A menina sentiu o coração dar aquele pulo. A cada faca atirada ela sentia-se mais hipnotizada. Contou vinte e uma facas. A última seria lançada e ela já não aguentaria. Cada faca era como um pedacinho de sua aflição. Quando o homem, fazendo mistério, lançou a última faca sob a cabeça da jovem: “Zap!” Louise caiu sobre a arquibancada, quase não acreditando no que vira. Ao fim da apresentação, a plateia ergueu-se, aplausos calorosos ecoaram. Louise bateu lentamente as mãos, perplexa. A paixão brotava-lhe no olhar. 




Quando o espetáculo acabou, a multidão formou uma imensa fila em direção à saída. Tia Anita parecia cansada, embora sorrisse. Louise cutucou-a: “E se ele tivesse acertado a moça?”. “É tudo técnica, eu já disse, meu bem”, respondeu a tia.  A menina fez um gesto com a mão, como se atirasse algo contra o chão. Fitando a tia, disse: “Quando eu crescer, vou atirar facas”. As duas saíram de mãos dadas, tia Anita bocejava enquanto Louise atirava facas imaginárias no chão.

terça-feira, 3 de abril de 2012

O sonho de Marieta

Ela tinha trinta anos. Fazia aniversário no dia quinze de abril. Todo ano costumava passar o dia no teatro da cidade, desde menininha queria ser atriz, usar perucas, estar no palco vivendo a vida de um alguém abstrato. Mas aquele ano certamente na iria, a nova patroa era uma mulher dura, inexorável, quase impossível dar-lhe uma folga mesmo sendo seu aniversário, ainda mais às terças, dia de ir ao mercado, arrumar as compras, temperar os frangos da semana, lavar os banheiros do andar de cima.

“Talvez se eu deixar tudo arrumado na segunda”, tartamudeou, trêmula, enquanto falava com a patroa que, ríspida como era, negou:

“Segunda é dia de levar a Milu ao veterinário, e tem a roupa pra lavar também. Você já arrumou as camisas do Otávio? Pedi isso a você na semana passada”.

É, realmente não iria ao teatro na terça. Pensou então em adiantar, talvez pudesse ir no domingo. Era seu único dia de folga, comemoraria no domingo então. Mas não, aos domingos era dia de peça e teria de pagar para entrar. Não tinha dinheiro extra para essas regalias. Ia mesmo era nos dias de ensaio, durante a semana, era de graça, deixavam-na olhar. Ficava lá na primeira fileira, o teatro vazio, os olhos brilhavam, úmidos. Mal podia controlar o ritmo frenético de seu coração frágil ao ouvir os atores declamando, movimentando-se no palco. “E se eu disser que estou doente?”.

“É que apareceu um caroço aqui, Dona Lucy, o médico disse que tenho que repousar”.

“Quanto tempo?”, perguntou impaciente a patroa.

“Coisa de um dia.”

“Precisa trazer atestado. Sabe como é o Otávio, muito rígido”.

Estava mesmo difícil. Provar como, se não havia ido a médico algum?

“Deixa pra lá, dona Lucy. Acho que sarou”.

Trinta e um anos faria sem ver seu sonho no palco do teatro. Àquela hora sentia falta de Dona Vera, aquela sim era patroa boa, mulher complacente, caridosa, amiga. Lembrava do carinho com que Dona Vera falava quando ela lhe pedia para ir ao teatro.

“Marieta, você ainda vai ser uma grande atriz”.

Como era doce a lembrança de tais palavras. Via-se linda em cima do palco, o texto decorado e ganhando vida, a plateia alucinada, aclamando-a. Podia sentir uma estrela coruscante no peito só de imaginar-se... atuando.

“Ah, Dona Vera, a senhora acha mesmo?”

“Sim, sim. Você vai ser tão linda no palco quanto a Tônia Carrero. As pessoas vão fazer filas nos teatros para ver você. Marieta, a grande dama do teatro” – Dona Vera fazia um gesto com as mãos e sorria.

Era impossível não ser atriz ao relembrar Dona Vera falando, tinha de ser atriz. Estava decidida, sentia aquilo nas vísceras. Iria ao ensaio na terça, pediria para fazer um teste, qualquer papel, até de cadeira. Tudo valia para começar. Mas e o emprego? E Dona Lucy? A mulher ficaria enervadíssima, e as compras, os frangos? Que vida estúpida! pensou. Por que Dona Vera teve de mudar-se para o Paraná deixando-a na casa dessa mulher tão cretina e incompreensiva? Justo Dona Vera que era sua madrinha de coração, sua grande fã. “Como a vida é injusta!”, lamentava.

Às vésperas de completar trinta e um anos, enquanto limpava os porta-retratos da sala de estar, ela, quase sem perceber, encenou, usando a flanela, uma cena de amor com o enorme espelho que ficava atrás da porta de entrada. Tinha movimentos suaves, o corpo deslizava pelo ar, os pés bailavam nos tapetes. Era uma atriz, repetia consigo mesma, “Sou uma atriz, sou uma atriz, sou uma atriz”. Havia o sonho, a liberdade, o desejo... Decidiu ligar para Dona Vera, tinham esse contato de vez em quando, a antiga patroa, tão carinhosa que era, havia lhe deixado o número do novo telefone.

“Ah, Marieta, é você?! E então, já virou atriz?”

“Nada, nada”, murmurou Marieta do outro lado da linha, “A senhora sabe bem, a nova patroa é meio azeda”.

“Mas e as aulas de teatro? Você não disse que ia tomar coragem e começar, criatura?”
“Nada, nada. Querer eu até queria, mas a senhora bem sabe”.

“Ah, Marieta, o que eu sei é que você vai ser uma grande atriz. Se você trabalhasse comigo, ia era fazer aula de teatro”.

Ao ouvir estas palavras, o coração de Marieta encheu-se duma esperança arrebatadora, “Jura, Dona Vera?”, “Sim, sim”, respondeu a mulher.

As duas ficaram uns instantes de conversa, quando houve um grito de Dona Lucy ordenando que Marieta fosse à cozinha arrumar os frangos. Sentiu, naquele momento, uma pontinha de tristeza, que era antes saudade de ser o que queria. Olhou no espelho, o olhar embaçou e ela repetiu com toda a força que seu coração possuísse “Sou uma atriz, sou uma atriz”. E foi temperar os frangos. 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

As bailarinas

Eram  três bailarinas. Estavam postas uma ao lado da outra, objetos sobre a mesa. Luíza entrou na sala agarrada à cintura da mãe, que ouvia atenta as instruções de Dona Estela. O olhar da menina, como uma antena pronta a captar belezas, mirou as bailarinas. Foi amor à primeira vista. Luíza soube, ali, que já não podia não tê-las. Enquanto Dona Estela, mulher esguia e de fala entrecortada, apresentava a casa com seus móveis luxuosos e seus lustres brilhantes, a menina tentava disfarçar o arrebatamento, a paixão que já a dominava. Luíza era desses amores imediatos que por si só não se explicam, amava coisas mínimas e de natureza absolutamente incompreensível, só sabia amar, amar e mesmo amar. Quando viu as três bailarinas sobre a mesa, sentiu o coração anunciar um desejo, os olhos tinham o brilho da esperança, uma bondade claríssima. Ela então ergueu um pouco a mão, sem que a mãe ou Dona Estela percebessem: se pudesse ao menos tocar as bailarinas... Ergueu um pouco mais a mão, quase tocando a pontinha do pé de uma delas, quando a mãe, que apesar de muito pobre valorizava certos princípios, a recriminou: Não toque no que não é seu, disse, afundando os dedos fechados na cabeça da menina. “Não toque no que não é seu”, estas palavras soaram violentas, feriram Luíza. Como não tocá-las? E que história era aquela de “não é seu”? As bailarinas já eram dela, ao menos foi o que seu coração já havia sentenciado, não havia jeito, ela só precisaria de uma oportunidade. Dona Estela então pediu que a mãe de Luíza a acompanhasse até a cozinha, lá estavam todos os utensílios essencias para o trabalho. Luíza esperou que as duas mulheres se afastassem e, embora com muito medo, pegou as três bailarinas, escondeu-as com a barra do vestido e, num susto, já as havia roubado. Sentia-se estranhamente confortada, uma alegria que beirava ao delírio a tomou. Sentou-se numa cadeira, as curtas pernas tremendo, e ficou ali escondendo suas bailarinas, rindo entre um frenezi e outro, imaginando como ficariam lindas na cabeceira de sua cama. Naquele ínterim, Dona Estela apareceu com a mãe de Luíza, as mulheres pareciam satisfeitas. A mãe de Luíza tomou-a pela mão, voltaria no dia seguinte para começar o trabalho.

Ao chegar em casa, Luíza correu para o quarto e soltou a barra do vestido, deixando cair sobre a cama as três bailarinas. Ficou ali um instante meio lúcida, sem a menor culpa ou qualquer sentimento de ignonímia. Estava apenas feliz. Aquela sensação boba e pequenina como se tivesse realizado alguma proeza, como se tivera ela mesma esculpido as bailarinas. Adimirava a delicadeza de que eram feitas, as cores tão delicadas, os traços detalhados, as sapatilhas minúsculas e tão reais. Eram como mágica. Luíza debruçou-se sobre a cama, pos as bailarias em pé e tocou-as, uma a uma. Com o dedo, contornava-as, sentindo um arrepio e uma vontade deliciosa de chorar. Dormiu tranquila.

No dia seguinte, a mãe de Luíza falava ao telefone, a menina a olhava apreensiva, uma sensação de perda dominando-a. Quando a mulher desligou o telefone, tinha o semblante rígido, os dentes trincados: Eu disse pra não tocar no que não é seu! Esbravejando, arrastou Luíza pelo pescoço, levou-a até o quarto e pos as bailarinas numa sacola de plástico. As duas foram até a casa de Dona Estela, que esperava de pé na porta, fazendo-se de ofendida.

A mãe de Luíza pediu todas as desculpas possíveis e jurou que a filha não era desonesta. Dona Estela quis apenas as bailarinas de volta. A mãe de Luíza então deu-lhe um beliscão ardido e sussurrou que ela entregasse as bailarinas. Sentindo que entregava seu prórpio coração estraçalhado, a menina entregou a sacola de plástico em que estavam as bailarinas. Dona Estela conferiu: uma, duas...três, e fechou com dureza a porta. Lágrimas escorreram dos olhos de Luíza, que colocara as mãos no peito verdadeiramente vazio. Sua mãe, indignada, saiu arrastando-a pela rua: nunca toque no que não é seu. Arrasada, Luíza aprendeu a lição. E jamais recuperou o dom que tinha para amar coisas assim.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A mãe

O menino escondeu-se o mais rápido que pode. Achou um canto escuro, úmido, um cheiro de mijo e medo. Encolheu as pernas e soltou a respiração que vinha prendendo nos pulmões. Por toda a casa o procuravam. Refugiado em seu esconderijo, ele podia ouvir, de longe mas igualmente pujante, a voz da mãe gritando: “Eu mato você, eu mato ouviu?”. Sentia as mãos gelarem, o coração gelando junto, os pés imóveis, os lábios tremendo. E a cabeça que desde cedo doía. Se a mãe o encontrasse, estava perdido. Ela era uma mulher de pouca paciência e incontrolavelmente passional. Quando sentia cólera, seria realmente capaz de matar alguém, inclusive ele, seu próprio filho. O menino fitava ao redor, no curto espaço em que se protegia, era um bicho acuado, seu hálito exalava ainda a bala de hortelã que chupara instantes antes de cometer o crime. Crime? Então poderia ele ser um criminoso à espera de um amargo e terrível castigo? Aprendera desde sempre, na escolda dominical, sobre o perdão. Mas o que conhecia na prática era a dureza dos punhos de sua mãe e a indiferença do pai. Nos dias de surras, enquanto a mãe tinha o cinto à mão, ele recorria ao pai, que o ignorava.

Passaram-se horas, ele desejava que o coração da mãe tivesse abrandado, afinal é como dizem “coração de mãe...”. Porém, ao passo que o tempo passava, a voz dela parecia mais próxima, ele podia quase sentir o cheiro de sua pele grossa e oleosa, o som de seu cabelo quando ela se movia depressa. Então seu coração disparava, o peito dava aquele aperto: não queria morrer, tinha medo, estava assustado, como só ficara no enterro do avô, seu melhor amigo. Sabia que bastava ser pego. Começou a rezar. Acreditava em anjo da guarda, em santo protetor, em espíritos do bem. Fez promessa, jurou entregar a alma a Deus, prometeu nunca mais caçoar da professora, estudaria muito a partir de então, seria o primeiro da turma, não roubaria mais a prova de matemática.   Enquanto, de mãos cruzadas sobre o peito, fazia promessas que jamais iria cumprir, sentiu a mãe aproximar-se. Veio à memória imediatamente a última surra, as marcas da fivela perfeitamente marcada em sua coxa. Houve desespero. O menino afligiu-se de uma forma que suas veias do pescoço incharam. Ele agarrou a própria goela, apertou-a. Sufocado, desistiu. Matar-se não seria melhor que apanhar dela. Deveria haver outro jeito de fugir, escapar. Mas pela proximidade do som daquela voz inconcussa, seria inútil. Ele a sentia perto, tão perto quanto na época em que ela o tinha embalado no colo. Começou a chorar. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto, molhando o pescoço, a gola da camisa. Era um choro incontido, com intervenção de alguns soluços interrompidos. Foi quando, ao erguer os olhos, o menino viu diante de si uma cara áspera, de sobrancelhas grossas e franzida de cólera. A mãe então agarrou-o pelos cacheados cabelos, arrastou-o para fora da cama e com uma violência misteriosa estapeou o menino. Sopapos estalaram, as bochechas envermelharam imediatamente, as lágrimas secaram. O menino gritava, pedia perdão com o clamor de quem cometera terrível crime: Não faço mais, dizia gritando. Não adiantava. Ele sabia. Passara por aquilo tantas outras vezes. Mas cada vez era pior, doía mais seu coração, ele tinha menos vontade de perdoar depois. A mãe então o largou, deixou a marca de seus dedos estampados na cara do menino como uma tatuagem em alto relevo. Ele sentiu a cara arder, o nariz escorrendo muco, soluços vindo. Quando ela saiu, ele chorou. Desta vez um choro manso, cheio desamparo. Já não sentia medo. Agora o sentimento era indizível, sentia um gosto de leite amargo na boca. Talvez a odiasse. Num ato de revolta, jurou não perdoá-la: “Mãe não presta, tomara que ela morra”, esbravejou, atirando longe o retrato com a foto dela.

No dia seguinte, durante o café da manhã, ele estava disposto a mostrar o quão magoado estava, queria castigá-la como ela o castigou. “Coma tudo. Não quero ver sobrar nada nesse prato, entendeu?”, disse a mãe, pondo diante dele um prato cheio de mingau. Ele a olhou e quis estapeá-la, estava fervendo de ódio. Mas o modo como ela disse “coma tudo”, foi tão doce que ele se enterneceu e disse: Mãe, eu amo você. E pos uma colher de mingau na boca. 

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Aula de dança

Ela cruzava as pernas como uma menina virgem, um pouco acanhada – sentia-se velha demais para aquela exposição. Na bolsa, o par de sapatos de couro inglês que a filha lhe dera de presente especialmente para as aulas. Estava orgulhosa da mãe, aliás, todos da família estavam: “A vovó é uma garotona”, brincava o neto mais velho. Ela, que naquela tarde estava quase desistindo, lembrou de como todos foram generosos. Na turma de vinte alunos, era a mais tímida. Ficava ali sentadinha, fingindo arrumar a barra da saia enquanto a jovem professora sacudia-se pelo salão.
― Vem, Dora, dizia a professora.
Dora levantava-se, tirava as alpercatas de tira com aquela paciência de mulher vivida, punha a meia-calça que grudava em suas grossas varizes, colocava os sapatos de couro inglês e, arrumando os curtos cabelos atrás da orelha, ia discretamente até o meio do salão. Seu andar era compactado, os saltos tamborilavam no piso. A música era alta, agitada, um ritmo caribenho contagiante. Todos remexiam-se, alguns com técnica, outros divertindo-se como se o mundo fosse pura festa. Dora estava contraída, ali parada no meio sem saber bem o que fazer. A jovem e simpática professora lhe segurava os quadris e falava numa língua enrolada: “Así, Dorita, así”. Dora tentava desvencilhar-se, talvez a dança não fosse para ela. Lembrava de como sua mãe sempre fora uma bela dançarina e seu pai um verdadeiro pé de valsa. Ah! Se fosse jovem, pensava, talvez arriscasse, mas agora. “Ahora sí, Dorita”, dizia a professora sem perder o ânimo.
Diante dum imenso espelho, toda a turma ensaiava alguns passos. Dora tinha vergonha desse momento, “tantas rugas”, sussurrava para si mesma enquanto buscava no reflexo um resquício de mocidade, qualquer traço que lhe dissesse: ainda és jovem, mulher. Mas ao tocar-se, sentia os riscos na pele caída, o formato de seu rosto modificado, juventude e desejo desmoronados. Abatida, era como uma ave velha cujas penas já não enfeitam e cujas asas já não servem para voar. Afastava-se e ia sentar-se. Ali, num canto escondido do salão, ela observava os sapatos tão brilhantes que a filha polira com verdadeiro carinho para que ela pudesse “arrasar” nas aulas. Sentia uma lágrima quente, o coração contraía com algum medo. Era melhor deixar as coisas como estavam. Deixaria de ir às aulas, poderia muito bem continuar como professora aposentada que esquece quase todas as noites o remédio da pressão. Estava bem assim. Enfadada às vezes, é verdade, mas sem muito risco. Sapatear, saltitar num salão ao som de uma música caribenha era demais. Talvez o falecido jamais a perdoasse. Viver àquela altura e com a espontaneidade a qual só as crianças têm acesso poderia ser-lhe uma sentença total.
 Observando a aula prosseguir, Dora tirava os brilhantes sapatos, prendia com um grampo o cabelo. Já levantando-se, disposta a ir e não retornar, esbarrou num senhor que acabava de chegar. Ele era um homem bonito, tinha braços fortes, uma tez corada. Dora receou o olhar, mas ao perceber que tratava-se de um belo homem, não resistiu e o mirou por um instante. O homem, simpático e galanteador, logo apresentou-se à ela.
― Amador, com a sua graça.
Ela, fazendo um gesto tímido com o pescoço, olhou para o salão e, sem fitá-lo, apresentou-se: “Dora, prazer”. Dança aqui faz tempo, ele perguntou. Não, não. Na verdade, hoje é meu último dia. O homem ergueu os braços, gracejou um pouco e logo estavam sentados um ao lado do outro. Dora com sua bolsa e sapatos no colo e o homem balançando a perna direita seguindo o ritmo da música.
― Então a senhora vai mesmo largar as aulas?
― Ah, sim. Isso aqui não é muito pra mim.
Ambos ficaram em silêncio um instante. Aquele silêncio que brota apenas dos corações ainda não conhecidos. O homem sibilou, balançou a cabeça e, com a ingenuidade e charme de um menino, tocou a mão de Dora, que sentiu o peito arrepiar como há mais de cinquenta anos não sentia. O homem levantou-se e, remexendo, foi até o meio do salão. Dora respirou fundo, os lábios tremendo, a mão gelada. Um erotismo fulminante a dominava, algum tipo de beleza fatal, algo nela latejava. Calçou com calma um sapato. Depois o outro. Passou a mão sobre o joelho, a meia-calça um pouco desfiada, e, com seu andar inseguro, foi até o meio do salão, aproximou-se do homem que lhe estendia os braços, jocoso. A música caribenha tocava e ela parecia perdida, sem saber bem o que fazer.